| 26 de agosto de 1987
E agora, poesia? Em seu mais amargurado verso, Carlos
Drummond de Andrade rima a perda da
filha única com a desilusão pela vida
e morre aos 84 anos Em apenas doze dias, o poeta Carlos Drummond de Andrade esteve duas vezes no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Na primeira, o poeta mineiro, de 84 anos, enterrou a pessoa que mais amava, a filha Maria Julieta, de 57, vítima de um câncer generalizado. Cabeça baixa, olhos secos e atônitos, Drummond segurou a mão do ex-chanceler Antônio Azeredo da Silveira, um amigo de muitos anos, e disse: "Não tenho mais futuro, acabou tudo para mim". O poeta não conseguiu percorrer a alameda até a sepultura da filha. Estava cansado. Doze dias depois, na terça-feira passada, o poeta morto percorreu a alameda, conduzido no caixão pelos seus três netos e amigos. Silenciosas, 800 pessoas acompanharam o féretro e sepultaram Drummond da maneira que ele pediu - sem orações e discursos, na cripta 19.099, ao lado da de Maria Julieta. Achando bárbaro o espetáculo da morte da filha, o poeta delicado preferiu morrer. De um ataque cardíaco, pouco antes das 9 horas da noite de segunda-feira passada. No Cemitério São João Batista repousará, pó sem esperança, pó sem lembrança, a frágil figura que foi um dia Carlos Drummond de Andrade. Mas, de tudo quanto foi seu passo caprichoso, na vida, restará, pois o resto se esfuma, uma pedra no meio do caminho. Essa pedra no meio do caminho é a obra do poeta - a obra maior de Drummond, o claro enigma de seu canto. Na prosa da vida, porém, a morte infligiu um duro golpe ao poeta. No velório de Julieta, o autor de Quadrilha pediu ao filólogo Antônio Houaiss que ficasse ao seu lado e comentou: "Isto não está certo, ela deveria ficar para fechar meus olhos". Para Houaiss, desde julho, quando a metástase tomou conta de Maria Julieta, pai e filha como que disputaram uma corrida cujo prêmio, para quem chegasse primeiro, seria a morte. CONFIDÊNCIAS - "Eles se sabiam condenados, mas cada um queria ir antes para não sentir o peso da ausência do outro", diz Houaiss. Nessa corrida, pai e filha, que mantinham uma relação intensíssima, trocaram todo o afeto e a atenção possíveis. Em 1979, quando ainda vivia em Buenos Aires, na Argentina, com os três filhos, Maria Julieta foi submetida a uma mastectomia no seio direito, já provocada pelo câncer ósseo. Nos meses em que ficou se recuperando no hospital, Maria Julieta lhe telefonava duas vezes por dia e mandava cartas semanalmente. Na terna cumplicidade entre os dois, a filha sempre dizia que estava muito bem, e o pai, no Rio de Janeiro, fingia acreditar que tudo estava realmente bem. Ao passar pelas sessões de quimioterapia, que a deixavam deprimida, Maria Julieta, também escritora, logo telefonava para amigos, pedindo que lhe contassem casos engraçados. "É que meu pai vei me telefonar agora e, pela minha voz, vai perceber que não estou me sentindo bem", explicava.
(...) Com a morte da filha, o poeta ainda manteve alguns de seus hábitos caseiros. Acordava às 7 da manhã, ia dormir tarde, sempre depois de dar um último telefonema e de organizar o lixo de seu escritório com requintes de minúcia. Esvaziava o cesto de lixo sobre um jornal, em cima de sua mesa de trabalho, picotava todos os papéis com uma tesoura, embrulhava na folha de jornal e colocava tudo dentro de um saco plástico. "Ele fazia o lixo mais organizado do prédio", conta o neto Pedro Augusto. "Parecia até um embrulho de presente." Luis Maurício, o neto de 33 anos, lembra que, na semana que se seguiu à morte de Maria Julieta, o avô organizou quase 1.000 telegramas e cartas de condolências e decidiu responder a todos coletivamente, num anúncio pago no Jornal do Brasil. Drummond, porém, quis incinerar toda a sua correspondência com Maria Julieta organizada em 33 pastas. "Essas cartas não vão interessar a ninguém", disse o poeta ao genro e netos. Foi convencido a não incinerá-las. (...) Agnóstico, o poeta havia expressado o desejo de que não houvesse orações ou crucifixos no seu velório e enterro. Ele considerava uma ofensa religiososa fingir que acreditava em Deus e em rezas. Pelo velório, passaram mais de 1.000 pessoas, entre admiradores anônimos, escritores, atores, políticos, ministros e acadêmicos. (...) O Rio de Janeiro e Itabira decretaram luto oficial. Mas Ulysses, interinamente na Presidência, não os seguiu. Deixou, assim, de tomar uma das poucas decisões razoáveis para um presidente transitório. No gabinete de trabalho do poeta, em seu apartamento, seus óculos estão sobre a mesa, ao lado da máquina de escrever. É a máquina velha, pois Drummond se adaptou à elétrica que a mulher deu de presente. Os livros estão em ordem nas prateleiras, e as gavetas, organizadas. Tudo parece aguardar para breve a volta de Carlos Drummond Andrade. Ele não voltará, pois o melhor dele mesmo lá está: seus livros de poesia e seus versos inesquecíveis. |